quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Epílogo in "Marina" de Carlos Ruiz Zafón

"A Barcelona da minha juventude já não existe. As suas ruas e a sua luz partiram para sempre e já apenas vivem na recordação. Quinze anos depois regressei à cidade e percorri os cenários que já julgava perdidos na minha memória. Soube que o casarão de Sarriá foi demolido. As ruas que o rodeavam fazem agora parte de uma auto-estrada pela qual, dizem, corre o progresso. O velho cemitério continua lá, suponho, perdido na neblina. Sentei-me naquele banco da praça que tantas vezes partilhara com Marina. Distingui ao longe a silhueta do meu antigo colégio, mas não me atrevi a aproximar-me. Algo me dizia que, se o fizesse, a minha juventude se evaporaria para sempre. O tempo não nos torna mais sábios, apenas mais cobardes.
Durante anos fugi sem saber de quê. Julguei que, se corresse atrás do horizonte, as sombras do passado se afastariam do meu caminho. Julguei que, se criasse suficiente distância, as vozes da minha mente se calariam para sempre. Regressei por fim àquela praia secreta em frente do Mediterrâneo. A ermida de Sant Elm erguia-se ao longe, sempre vigilante. Encontrei o velho Tucker do meu amigo Germán. Curiosamente, continua lá, no seu destino final entre os pinheiros.
Desci até à beira-mar e sentei-me na areia, onde anos antes espalhara as cinzas de Marina. A mesma luz daquele dia iluminou o céu e senti a sua presença com intensidade. Compreendi que já não podia nem queria fugir mais. Voltara a casa.
Prometi a Marina nos seus últimos dias que, se ela não o pudesse fazer, eu acabaria esta história. Aquele livro em branco que lhe ofereci acompanhou-me todos estes anos. As suas palavras serão as minhas. Não sei se saberei fazer justiça à minha promessa. Às vezes duvido da minha memória e pergunto a mim mesmo se apenas serei capaz de recordar o que nunca aconteceu.
Marina, levaste todas as respostas contigo."

in "Marina" de Carlos Ruiz Zafón

"Recordo que Gérman desatou a chorar e que uma força incontrolável me fez fugir daquele lugar. Corri e corri já sem fôlego até chegar a umas ruidosas ruas repletas de rostos anónimos que ignoravam o meu sofrimento. Vi à minha volta um mundo que não se importava nada com a sorte de Marina. Um universo em que a sua vida era uma simples gota de água no meio das ondas."

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

"As sem-razões do amor", Carlos Drummond de Andrade

"As sem-razões do amor", Carlos Drummond de Andrade

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

"A Dream Within A Dream" - Edgar Allan Poe

A Dream Within A Dream

Edgar Allan Poe

Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow-
You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.
I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand-
How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep- while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?

Tradução:

Aceite um beijo de adeus!
Agora deixo os olhos teus
Com muitos dizeres meus –
Não erra quem diz que disponho
De meus dias como um sonho;
Se a esperança foi embora
Num minuto ou numa hora
No escuro ou numa visão
Foi todo o passado em vão?
Tudo que vejo ou suponho
É um sonho dentro de um sonho
As ondas vêm martelar
As rochas perto do mar
Enquanto a mão tateia
Grãos dourados de areia
Tão poucos! E já se vão
Pelos meus dedos escapam
E enquanto choro naufragam
Deus! Por que não consigo
Mantê-los a salvo comigo?
Deus! Não posso salvar
Nenhum do inclemente mar?
É tudo que vejo ou suponho
Um sonho dentro de um sonho?

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Eugénio de Andrade, "Obscuro Domínio"

Amar-te assim desvelado
entre barro fresco e ardor.
Sorver o rumor das luzes
entre os teus lábios fendidos.

Deslizar pela vertente
da garganta, ser música
onde o silêncio aflui
e se concentra.

Irreprimível queimadura
ou vertigem desdobrada
beijo a beijo,
brancura dilacerada

Penetrar na doçura da areia
ou do lume,
na luz queimada
da pupila mais azul,

no oiro anoitecido
entre pétalas cerradas,
no alto e navegável
golfo do desejo,

onde o furor habita
crispado de agulhas,
onde faça sangrar
as tuas águas nuas.

Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"