quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

José Carlos Ary dos Santos - Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Augusto Gil - Balada da Neve

Batem leve, levemente,
Como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
E a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
Mas há pouco, há poucochinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
Com tão estranha leveza,
Que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu,
Branca e leve, branca e fria...
-Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho,
Passa gente e, quando passa,
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança,
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
A neve deixa inda vê-los,
Primeiro, bem definidos,
Depois, em sulcos compridos,
Porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
Sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
Porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
Uma funda turbação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.

António Lobo Antunes - Homens constipados

Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
Anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

António Gedeão - Pedra Filosofal

Pedra Filosofal

António Gedeão

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos,
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que foça através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

Anónimo

Poema de cacófatos

Anónimo

No cume daquela serra
Eu plantei uma roseira
O mato no cume cresce
A rosa no cume cheira

Quando cai a chuva fina
Salpicos no cume caiem
Lagartos no cume entram
Abelhas do cume saem

Mas se cai a chuva grossa
A água do cume desce
Orvalho no cume brilha
A floresta no cume cresce

Depois que a chuva cessa
Ao cume volta a alegria
Pois torna a brilhar de novo
O sol que no cume ardia

E à hora crepuscular
Tudo no cume escurece
Pirilampos do cume saem
Estrelas no cume aparecem

Quem da vila ao cume vai
Sente agradável prazer
Porque respira no cume
Aromas de entontecer

No cume daquela serra
Plantei uma roseira
O mato no cume cresce
A rosa no cume cheira

Anónimo

Declaração

Anónimo

Meu coração por ti gela
De tão formosa que t'acho
Se m'amasses com'eu t'amo
T'acharias com'eu m'acho!

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O Chão é Cama para o Amor Urgente - Carlos Drummond de Andrade

O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a húmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.

in "O Amor Natural"

O Amor - Eugénio de Andrade

Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mai diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma

Assim é o amor: mortal e navegável.

in "Obscuro Domínio" 

O amor é o Amor - Alexandre O'Neill

O amor é o amor.- e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos - somos um? somos dois?
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?

Alexandre O'Neill, in " Abandono Vigiado"

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Juan José Millás - excerto do livro "Laura y Julio"

"Julio, suplantando a Manuel, respondió al último de estos mensajes con el siguiente texto:"Querida Laura, no es raro que hayas percibido en el ambiente algunas señales mías. Llevabas razón: hay una energía independiente del cuerpo. Con ella, he visitado durante los últimos días el mundo al que he pertenecido para despedirme de él, pues sabía que mi final estaba cerca. Lo cierto es que acabo de morir, querida Laura, querida mía. Me he convertido, como tú suponías que ocurre con los muertos, en una fuerza invisible, pero real, obligada a emprender un largo viaje. No podré hacerlo, no podré irme del todo, si no dejo arreglados los asuntos de los que soy responsable. Mi hijo, nuestro hijo, es el principal. Necesitará un padre. Aunque ahora te parezca mentira, creo que ese padre debe ser Julio. No tengas en cuenta mis opiniones anteriores sobre él. Cuando nos liberamos de las servidumbres del cuerpo, se ven las cosas de otro modo. ?Sabes?, Julio y yo, pese a las aparencias, estábamos misteriosamente unidos por un vínculo de complementariedad. Es cierto que no tiene grandes ideas abstractas, pero es un genio de lo concreto. Para sacar adelante a un hijo hacen falta grandes ideas, sí, pero también cosas definidas, tangibles, prácticas. Nadie mejor que tu marido podría ocuparse de estos aspectos. En cierto modo, esa criatura que llevas en el vientre es hija de los tres, sí, también de Julio que ha cumplido en nuestra relación un papel en aparencia modesto, pero essencial. Y lo ha cumplido bien. A veces, él ha hecho su representación mejor que nosotros la nuestra. Debemos tener el valor moral de reconocérselo. Será un buen padre para el niño, quizá un poco obsesivo y excesivamente protector, pero tú corregirás esa tendencia a lo concreto y yo, desde donde quiera que esté, cuidaré de los tres. No le cuentes jamás lo nuestro, ni le insinúes la posibilidad de que el niño no sea suyo. Llámale tras mi entierro, y vuelve con él porque también en él ha quedado una parte muy importante de mí. Te querrá siempre y te protegerá desde el más allá, Manuel."