quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Fernando Pessoa - Pensamento sobre a felicidade

A Felicidade vem da Monotonia.

Em sua essência a vida é monótona. A felicidade consiste pois numa adaptação razoavelmente exacta à manotonia da vida. Tornarmo-nos monótonos é tornarmo-nos iguais à vida; é, em suma, viver plenamente. E viver plenamente é ser feliz.
Os ilógicos doentes riem - de mau grado, no fundo - da felicidade burguesa, da monotonia da vida do burguês que vive em regularidade quotidiana e, da mulher dele que se entretém no arranjo da casa e se distrai nas minúcias de cuidar dos filhos e fala dos vizinhos e dos conhecidos. Isto, porém, é que é a felicidade.
Parece, a princípio, que as cousas novas é que devem dar prazer ao espírito; mas as cousas novas são poucas e cada uma delas é nova só uma vez. Depois, a sensibilidade é limitada, e não vibra indefinidamente. Um excesso de cousas novas acabará por cansar, porque não há sensibilidade para acompanhar os estímulos dela.
Conformar-se com a monotonia é achar tudo novo sempre. A visão burguesa da vida é a visão científica; porque, com efeito, tudo é sempre novo, e antes de este hoje nunca houve este hoje.
É claro que ele não diria nada disto. Às minhas observações, limita-se a sorrir; e é o seu sorriso que me traz, pormenorizadas, as considerações que deixo escritas, por meditação dos pósteros.

in "Reflexões Pessoais"

Aristóteles - Pensamento sobre felicidade

A Felicidade depende do Destino ou Carácter de cada um.

"Todos os homens aspiram à vida feliz e à felicidade, esta é uma coisa manifesta; mas, se muitos têm a possibilidade de alcançá-la, outros não a têm em virtude de algum azar ou vício de natureza (pois a vida feliz requer um certo acompanhamento de bens externos, em quantidade menor para os indivíduos dotados de melhores disposições e em quantidade maior para aqueles cujas disposições são piores), e outros, finalmente, tendo a possibilidade de ser felizes, imprimem desde o início uma direcção errada na sua busca da felicidade."

in "Ética a Nicómaco" 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Florbela Espanca - Correspondência sobre o casamento

A Única Coisa que Desculpa o Casamento é o Amor

"Na carta que lhe escrevi dava-lhe, como me tinha pedido, a minha opinião sobre o casamento. É a seguinte: acho o casamento uma coisa revoltante! E isto por uma única razão mas que para mim é tudo, para mim e para aquelas mulheres que não são apenas fêmeas, para todas as delicadas, para todas as que têm pudor, espírito e consciência. Essa razão é a posse, essa suprema e grande lei da Natureza que, no entanto, revolta tudo quanto eu tenho de delicado e bom no íntimo da minha alma. Ganha-se um amigo muitas vezes, é certo; um amigo que às vezes é o nosso supremo amparo, mas em compensação quantas revoltas, quantas mágoas, quantas desilusões! Quantas!... A minha querida faz bem, faz muito bem em não se querer sujeitar ao mercado, à venda. Eu casei e casei por amor. É a única coisa que desculpa, no meu entender, o casamento, porque do contrário, quando nele apensa entram o interesse e a ambição, revolta-me e indigna-me."

José Luís Peixoto - Amo-te

"Amo-te. Talvez não seja próprio vir aqui, para as páginas deste livro, dizer que te amo. Não creio que os leitores deste livro procurem informações como esta. No mundo, há mais uma pessoa que ama. Qual a relevância dessa notícia? À sombra do guarda-sol ou de um pinheiro de piqueniques, os leitores não deverão impressionar-se demasiado com isso. Depois de lerem estas palavras, os seus pensamentos instantâneos poderão diluir-se com um olhar em volta. Para eles, este texto será como iniciais escritas por adolescentes na areia, a onda que chega para cobri-las e apagá-las. É possível que, perante esta longa afirmação, alguns desses leitores se indignem e que escrevam cartas de protesto, que reclamem junto da editora. Dou-lhes, desde já, toda a razão.
Eu sei. Talvez não seja próprio vir aqui dizer aquilo que, de modo mais ecológico, te posso afirmar ao vivo, por email, por comentário do facebook ou mensagem de telemóvel, mas é tão bom acreditar, transporta tanta paz. Tu sabes. Extasio-me perante este agora e deixo que a sua imensidão me transcenda, não a tento contrariar ou reduzir a qualquer coisa explicável, que tenha cabimento nas palavras, nestas pobres palavras. Em vez disso, desfruto-a, sorrio-lhe. Não estou aqui com a expectativa se ser entendido. Eu próprio procuro aninda essa compreensão. Estou aqui apenas com o meu rosto, o meu olhar parado, a minha figura. Tudo aquilo que tenho para dizer está por detrás dessa imagem. Hoje, esse é o alfabeto com que realmente escrevo, o significado. Escrevo também com uma grande quantidade de elementos invisíveis, que chegam à pele e a atravessam. É dessa forma que sinto aquilo que tenho para dizer, pele e para lá da pele.

Os teus pais vão ler estas palavras, que embaraçoso. A minha mãe, as minhas irmãs e as minhas sobrinhas vão ler estas palavras e vão pensar: passou-se. Consigo imaginar todas essas reacções, mas não consigo evitar que este texto continue a dizer que te amo. Sei que os outros apenas nos poderão ver com os seus próprios olhos. Para eles, seremos qualquer memória, qualquer impressão, um reflexo daquilo que eles próprios sabem, personagens de uma espécie de telenovela. A grande diferença é que nós somos nós e temos este agora imenso, este verbo no presente. Talvez fosse mais confortável, se dispusesse de um verbo mais sofisticado, menos gasto: liquefazer, matutar, discernir. Um tempo verbal mais complexo: se eu te tivesse liquefeito, se eu te tivesse matutado, se eu te tivesse discernido. Talvez. Nunca saberei porque aquilo que tenho para dizer é este verbo, este presente do indicatico de escola primária.
Na sua simplicidade, encandeia e, no entanto, diz tão pouco. Mesmo tentando, transmito-lhes pouco ao informá-los que te amo. Não ficam a saber mais do que se lhes dissesse que me alimento, respiro, existo. E não podem sequer ter a certeza de que eu dependa dessas necessidades vitais. Talvez seja melhor assim, continuem debaixo do guarda-sol, do pinheiro de piqueniques, olhem em volta, virem a página. Talvez seja preferível que a imensidão deste momento não os perturbe, que se mantenha onde está, invisível e tão concreta nas cores da paisagem, nomeada por estas palavras que não a dizem e que, no entanto, existem, impressas, pouco ecológicas e, ainda assim, feitas de uma natureza única, a natureza, que nasce da terra, que se estende no céu, sol, lua, oceano, montanhas, que determina o dia e a noite, a passagem das estações, a idade, e que está contida numa só palavra, num só verbo, que abrigo no meu rosto, que é transparente no meu olhar e que agora, aqui, nas páginas deste livro, preciso de dizer. Talvez não seja próprio dizê-lo aqui, mas talvez seja ainda menos próprio escrevê-lo em todas as paredes da cidade, esculpir precipícios com essa verdade ou rasgar o peito com uma faca e, com a ponta dessa mesma faca, gravá-lo dentre de mim, em sulcos profundos, com o tamanho deste agora. "

Excerto do livro Abraço

Florbela Espanca - Fanatismo

Minh' alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No mist'rioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!...

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastos:
"Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."

Florbela Espanca - Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida.
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Florbela Espanca - Amar!

Amar! Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca - Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!


É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Pensamento de Fernando Pessoa

"Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade.
Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta.
Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos, nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice.
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril.”

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Pensamento de José Saramago

Nós temos sempre necessidade de pertencer a alguma coisa; e a liberdade plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma. Mas como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica, e neste caso, a língua com que se escreve?

Se o leitor, o leitor de livros; aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar pra traz e começar do principio, e poder ler os primitivos e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação, transformando-se numa mina inesgotável de beleza e valor.

José Carlos Ary dos Santos - "As portas que Abril abriu"

Era uma vez um país
Onde entre o mar e a guerra
Vivia o mais infeliz
Dos povos à beira terra.

Onde entre vinhas sobredos
Vales socalcos searas
Serras atalhos veredas
Lezírias e praias claras
Um povo se debruçava
Como um vime de tristeza
Sobre um rio onde mirava
A sua própria pobreza.

Era uma vez um país
Onde o pão era contado
Onde quem tinha a raiz
Tinha o fruto arrecadado
Onde quem tinha o dinheiro
Tinha o operário algemado
Onde suava o ceifeiro
Que dormia com o gado
Onde tossia o mineiro
Em Aljustrel ajustado
Onde morria primeiro
Quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país
De tal maneira explorado
Pelos consórcios fabris
Pelo mando acumulado
Pelas ideias nazis
Pelo dinheiro estragado
Pelo dobrar da cerviz
Pelo trabalho amarrado
Que até hoje já se diz
Que nos tempos do passado
Se chamava esse país
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos
Vales socalcos searas
Serras atalhos veredas
Lezírias e praias claras
Vivia um povo tão pobre
Que partia para a guerra
Para encher quem estava podre
De comer a sua terra.

Um povo que era levado
Para Angola nos porões
Um povo que era tratado
Como a arma dos patrões
Um povo que era obrigado
A matar por suas mãos
Sem saber que um bom soldado
Nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
Que dentro de um povo escravo
Alguém que lhe queria bem
Um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança
Feita de força e vontade
Era ainda uma criança
Mas já era a liberdade.

Era já uma promessa
Era a força da razão
Do coração à cabeça
Da cabeça ao coração.

Quem o fez era soldado
Homem novo capitão
Mas também tinha a seu lado
Muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
A defender um irmão,
Esses que tinham passado
O horror da solidão,
Esses que tinham jurado
Sobre uma côdea de pão
Ver o povo libertado
Do terror da opressão.

Não tinham armas, é certo,
Mas tinham toda a razão,
Quando um homem morre perto
Tem de haver distanciação,
Uma pistola guardada
Nas dobras da sua opção
Uma bala disparada
Contra a sua própria mão
E uma força perseguida
Que na escolha do mais forte
Faz com que a força da vida
Seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado
Homem novo capitão
Mas também tinha a seu lado
Muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo
Começou a floração
Do capitão ao soldado
Do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado
Percebeu qual a razão
Porque o povo despojado
Lhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhado
Em sua própria grandeza
Era soldado forçado
Contra a pátria portuguesa.

Era preso e exilado
E no seu próprio país
Muitas vezes estrangulado
Pelos generais senis.

Capitão que não comanda
Não pode ficar calado
É o povo que lhe manda
Ser capitão revoltado
É o povo que lhe diz
Que não ceda e não hesite
– Pode nascer um país
Do ventre duma chaimite.

Porque a força bem empregue
Contra a posição contrária
Nunca oprime nem persegue
– É força revolucionária!

Foi então que Abril abriu
As portas da claridade
E a nossa gente invadiu
A sua própria cidade.

Disse a primeira palavra,
Na madrugada serena,
Um poeta que cantava
O povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredos
Vales socalcos searas
Serras atalhos veredas
Lezírias e praias claras
Desceram homens sem medo,
Marujos, soldados, «páras»,
Que não queriam o degredo
Dum povo que se separa.

E chegaram à cidade
Onde os monstros se acoitavam
Era a hora da verdade
Para as hienas que mandavam
A hora da claridade
Para os sóis que despontavam
E a hora da vontade
Para os homens que lutavam.

Em idas vindas esperas
Encontros esquinas e praças
Não se pouparam as feras
Arrancaram-se as mordaças
E o povo saiu à rua
Com sete pedras na mão
E uma pedra de lua
No lugar do coração.

Dizia soldado amigo
Meu camarada e irmão
Este povo está contigo
Nascemos do mesmo chão
Trazemos a mesma chama
Temos a mesma ração
Dormimos na mesma cama
Comendo do mesmo pão.

Camarada e meu amigo
Soldadinho ou capitão
Este povo está contigo
A malta dá-te razão.

Foi esta força sem tiros
De antes quebrar que torcer
Esta ausência de suspiros
Esta fúria de viver
Este mar de vozes livres
Sempre a crescer a crescer
Que das espingardas fez livros
Para aprendermos a ler
Que dos canhões fez enxadas
Para lavrarmos a terra
E das balas disparadas
Apenas o fim da guerra.

Foi esta força viril
De antes quebrar que torcer
Que, em vinte e cinco de Abril,
Fez Portugal renascer.

E em Lisboa capital
Dos novos mestres de Avis
O povo de Portugal
Deu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passado
Às vezes por mãos estranhas
O poder que ali foi dado
Saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
Vales socalcos searas
Serras atalhos veredas
Lezírias e praias claras
Onde um povo se curvava
Como um vime de tristeza
Sobre um rio onde mirava
A sua própria pobreza.

E se esse poder um dia
O quiser roubar alguém
Não fica na burguesia
Volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
Que em boa hora o pariu
Agora ninguém mais cerra
As portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias
Se escancararam de vez
Essas janelas vazias
Que se encheram outra vez
E essas celas tão frias
Tão cheias de sordidez
Que espreitavam como espias
Todo o povo português.

Agora que já floriu
A esperança na nossa terra
As portas que Abril abriu
Nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho
Levantado como um punho
Em Maio surgiu vermelho
O cravo do mês de Junho.

Quando o povo desfilou
Nas ruas em procissão
De novo se processou
A própria revolução.

Mas eram olhos as balas
Abraços punhais e lanças
Enamoradas as alas
Dos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvido
Tantas vezes repetido
Dizia que o povo unido
Jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho
Levantado como um punho
Em Maio surgiu vermelho
O cravo do mês de Junho.

E então operários mineiros
Pescadores e ganhões
Marçanos e carpinteiros
Empregados dos balcões
Mulheres-a-dias pedreiros
Reformados sem pensões
Dactilógrafos carteiros
E outras muitas profissões
Souberam que o seu dinheiro
Era presa dos patrões.

O seu lado também estavam
Jornalistas que escreviam
Actores que se desdobravam
Cientistas que aprendiam
Poetas que estrebuchavam
Cantores que não se vendiam
Mas enquanto estes lutavam
É certo que não sentiam
A fome com que apertavam
Os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura
Escrever constrói liberdade
E não há coisa mais pura
Do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados
Na mesma luta de ideais
Ambos sectores explorados
Ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam
Entre pragas e perjúrios
Agulhas que se espetavam
Silêncios boatos murmúrios
Risinhos que se calavam
Palácios contra tugúrios
Fortunas que levantavam
Promessas de maus augúrios
Os que em vida se enterravam
Por serem falsos e espúrios
Maiorais da minoria
Que diziam silenciosa
E que em silêncio fazia
A coisa mais horrorosa:
Minar como um sinapismo
E com ordenados régios
O alvor do socialismo
E o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro
Que sucedeu a vindima
Quando pisámos Setembro
A verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte
Que sabia tanto a Abril
Que nem o medo da morte
Nos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de pé
Juntos soldados e povo
Para mostrarmos como é
Que se faz um país novo.

Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
Odeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outono
Mais forte que a Primavera
Que trouxe os homens sem dono
De que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros
Pescadores e ganhões
Operários e carpinteiros
Empregados dos balcões
Mulheres-a-dias pedreiros
Reformados sem pensões
Dactilógrafos carteiros
E outras muitas profissões
Que deu o poder cimeiro
A quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos
Nós repartimos o pão
É que acabaram os bodos
— Cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendas
Palácios e palacetes
Os generais com prebendas
Caciques e cassetetes
Os que montavam cavalos
Para caçarem veados
Os que davam dois estalos
Na cara dos empregados
Os que tinham bons amigos
No consórcio dos sabões
E coçavam os umbigos
Como quem coça os galões
Os generais subalternos
Que aceitavam os patrões
Os generais inimigos
Os generais garanhões
Teciam teias de aranha
E eram mais camaleões
Que a lombriga que se amanha
Com os próprios cagalhões.

Com generais desta apanha
Já não há revoluções.

Por isso o onze de Março
Foi um baile de Tartufos
Uma alternância de terços
Entre ricaços e bufos.

E tivemos de pagar
Com o sangue de um soldado
O preço de já não estar
Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes
E para terras de Espanha
Os que faziam alardes
Dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé
Capitães de pedra e cal
Os homens que na Guiné
Aprenderam Portugal.

Os tais homens que sentiram
Que um animal racional
Opõe àqueles que o firam
Consciência nacional.

Os tais homens que souberam
Fazer a revolução
Porque na guerra entenderam
O que era a libertação.

Os que viram claramente
E com os cinco sentidos
Morrer tanta, tanta gente
Que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço
Temperado com a tristeza
Que envolveram num abraço
Toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
E depois tão maltratada
Por quem herdou a desdita
Da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo
Pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
Nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
E uma vela desfraldada
Para levar a ternura
À distância imaginada.

Foi este lado da história
Que os capitães descobriram
Que ficará na memória
Das naus que de Abril partiram
Das naves que transportaram
O nosso abraço profundo
Aos povos que agora deram
Novos países ao mundo.

Por saberem como é
Ficaram de pedra e cal
Capitães que na Guiné
Descobriram Portugal.

E em sua pátria fizeram
O que deviam fazer:
Ao seu povo devolveram
O que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
Que ficarão a render
Ao invés dos monopólios
Para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
E outras coisas para erguer
Antenas centrais e fios
Dum país que vai nascer.
Mesmo que seja com frio
É preciso é aquecer
Pensar que somos um rio
Que vai dar onde quiser
Pensar que somos um mar
Que nunca mais tem fronteiras
E havemos de navegar
De muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho
No Alentejo com pão
No Ribatejo com vinho
Na Beira com requeijão
E trocando agora as voltas
Ao vira da produção
No Alentejo bolotas
No Algarve maçapão
Vindimas no Alto Douro
Tomates em Azeitão
Azeite da cor do ouro
Que é verde ao pé do Fundão
E fica amarelo puro
Nos campos do Baleizão.

Quando a terra for do povo
O povo deita-lhe a mão!
É isto a reforma agrária
Em sua própria expressão:
A maneira mais primária
De que nós temos um quinhão
Da semente proletária
Da nossa revolução.

Quem a fez era soldado
Homem novo capitão
Mas também tinha a seu lado
Muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu
Ainda pouco se disse
Um menino que sorriu
Uma porta que se abrisse
Um fruto que se expandiu
Um pão que se repartisse
Um capitão que seguiu
O que a história lhe predisse
E entre vinhas sobredos
Vales socalcos searas
Serras atalhos veredas
Lezírias e praias claras
Um povo que levantava
Sobre um rio de pobreza
A bandeira em que ondulava
A sua própria grandeza!

De tudo o que Abril abriu
Ainda pouco se disse
E só nos faltava agora
Que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
Viessem ferrar o dente
Na carne dos capitães
Que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós
Povo soberano e total
Que ao mesmo tempo é a voz
E o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros fascistas
Agiotas do lazer
Latifundiários machistas
Balofos verbos de encher
E outras coisas em istas
Que não cabe aqui dizer
Que aos capitães progressistas
O povo deu o poder!
E se esse poder um dia
O quiser roubar alguém
Não fica na burguesia
Volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
Que em boa hora o pariu
Agora ninguém mais cerra
As portas que Abril abriu!





António Gedeão - "Calçada de Carriche"

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão - "Lágrima de preta"

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

Eugénio de Andrade - "Adeus"

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.



Pablo Neruda - Veinte poemas de amor y una canción desesperada

Poema 20... Puedo escribir los versos más tristes está noche...

Puedo escribir los versos más tristes está noche.
Escribir, por ejemplo: «La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos».

El viento de la noche gira en el cielo y canta.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.
En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.
Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.
Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.
Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.
Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.
Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.
La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.
De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.
Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

Pablo Neruda - Cien sonetos de amor

LXVI

No te quiero sino porque te quiero
y de quererte a no quererte llego
y de esperarte cuando no te espero
pasa mi corazón del frío al fuego.

Te quiero sólo porque a ti te quiero,
te odio sin fin, y odiándote te ruego,
y la medida de mi amor viajero
es no verte y amarte como un ciego.

Tal vez consumirá la luz de enero,
su rayo cruel, mi corazón entero,
robándome la llave del sosiego.

En esta historia sólo yo me muero
y moriré de amor porque te quiero,
porque te quiero, amor, a sangre y fuego.

Objectivo

O objectivo deste blog é partilhar textos literários que me agradem.

Espero que também sejam do agrado de várias pessoas...